conto do mês: PA-TA-POOM recordação de Paris
Há umas determinadas pessoas, coitadas, que julgam não ter importância as pequenas coisas, de modo que quem de facto souber fazer atenção à vida, lá lhe cabem as pequenas coisas, misturadas com as grandes. Não sei se o leitor também tem como eu alguma coisa que contar a este respeito daqueles que andam tão ingloriamente nas alturas que ficam furados nas solas das botas. Ora o que eu vou recordar é-me profundamente doloroso, mas faço-o por um profundo respeito que tenho pelo meu entendimento. Não foi esta a primeira vez nem a milésima que eu tive contacto com pessoas em evidência oficial e nas circunstâncias que pretendo marcar neste capítulo. De resto, o leitor vai certamente reconhecer o tipo, embora não conheça pessoalmente os personagens. Refiro-me àqueles que se servem da nossa intimidade em igualdade de circunstâncias e que em público procedem como se nós também fizéssemos parte desse público. Provavelmente, não me faço entender:
O que eu quero dizer é que há meninos que quando estão sós connosco são uma coisa, e basta que apareça um terceiro para a diferença ser formidável. Enquanto a conversa foi apenas entre ele e eu, tudo correu muito bem e ele não levou a melhor: porém, quando chega o terceiro, parece efectivamente que ele é que esteve a ensinar-me, e se o terceiro não fica convencido disso mesmo não é porque não tenha todas as razões para o poder afirmar. O leitor já começa, com certeza, a ver surgirem esses cavalheiros aos quais me esforço aqui por retratar e que são aos milhares por esse mundo fora e raras as excepções. Quantas vezes na nossa ingenuidade, ou melhor, na nossa genersidade, nós não tememos e até procuramos dar à conversa o seu máximo de oscilação e de significado por amor ao entendimento, e esses senhores, apenas chega o público, continuam sozinhos na superioridade do diálogo, como se fosse seu exclusivo e em desprimor do camarada, que na maior parte das vezes foi quem revelou a altura do assunto. Muito teria eu que me revoltar se desde muito cedo não tivesse reparado que quem acaba sempre por perder é aquele que se colocou mal. Pois isto acontece comigo e não sou conhecido por parvo, e talvez por isso mesmo tenha acontecido mais vezes comigo. Ninguém deseja neste mundo ser mais parvo ou mais ignorante do que outro conhecido como inteligente. E se a preocupação do mundo é dar bem mostras de vitória, embora a não tenham, muito deve custar a esses senhores que se adornam de vitoriosos constatar que a clareza de espírito e o prazer do entendimento esteja precisamente naqueles que parecem não se preocupar com o culto externo da conquista.
Conheci no estrangeiro um compatriota nosso, o qual por condições extraordinárias manteve comigo uma intimidade ocasional.
Não posso deixar de repetir aqui que essa intimidade chegou a ser adorável, verdadeira convivência entre iguais. Porém, o nosso compatriota era de uma infantilidade mundana que me fazia sorrir: quando aparecia um terceiro ou terceiros eu passava imediatamente para seu secretário e não me punha em lugar mais subalterno porque parece que os meus olhos, sem eu querer, não lho consentiriam. Esse nosso compatriota, tão conhecido do público como eu, chegava a ser magistral nas coisas aparatosas da vida, mas nas mais pequeninas coisas só eu é que o conhecia. Não é passada com ele a história que o leitor vai conhecer, com outros dois compatriotas tão evidentes na vida pública portuguesa como ele, ou ainda mais.
Trata-se de dois ministros, de dois lentes da Universidade, os quais ainda que pouco mais velhos do que eu usufruíam já de uma notoriedade científica, sinónimo incontestável de fenómenos. Um acontecimento resultante da nefasta política nacional juntara no Palace Hotel de Madrid os dois referidos lentes e antigos ministros e o autor. Eu seguia para Paris, forçado a abandonar sem razão a Pátria e deixando na Penitenciária um irmão como preso político. Os dois antigos ministros e ainda lentes da Universidade eram de políticas opostas e por isso mesmo protegiam-se mutuamente, colo de cima colo de baixo. Cada um deles me disse a mim particularmente que o outrolhe devia a vida a ele. E parece que era verdadeira a história e recente. Sabendo que no dia seguinte eu ia em direcção a Paris, resolveram os dois, de comum acordo, aproveitar a minha companhia e seguirem viagem comigo. Não sei como se lhes meteu na cabeça que eu era um parisiense consumado, mas foi tal o seu interesse e confiança na minha companhia que eu não pude deixar de usar da piedade de os deixar na doce ilusão. Junte-se a isto a circunsância de sermos três exilados e fora da pátria pela primeira vez, para que eu tenha ainda mais desculpa em lhes ter mentido descaradamente que conhecia Paris como os meus dedos. A confusão que eles faziam era certamente com meu pai, residente definitivamente em Paris desde 1899.
Ora eu nem por sombras iria para casa do meu pai e pelo contrário faria o possível para que ele ignorasse que eu estava em Paris. Eram razões particulares e fortes que me levavam a proceder desta maneira. Tinha contudo desde a minha saída de Lisboa um quarto às minhas ordens numa pensão da rue Gruger em Passy.
Foi o acaso de um brasileiro de passagem em Lisboa que me levou à descoberta de um quarto em Paris, no ano do armistício, em Janeiro, e os dois antigos ministros e ainda lentes da Universidade não ignoravam em Madrid o pânico que havia em Paris para se arranjar alojamento por causa da invasão da humanidade inteira na capital do mundo, depois da Vitória.
Por conseguinte, o meu conhecimento de Paris e o meu quarto deixaram dormir descansados os nossos dois compatriotas na «cabine diplomatique». Quando nos apeámos no Quai d'Orsay já há muito que eu era indevidamente o informador dos meus dois companheiros. Mas procedi sempre de maneira que eu não me denunciasse, não porque pusesse grande empenho em passar pelo que eu era, mas apenas para não os deixar perder aquela confiança em que estavam acompanhados por quem já sabia como aquilo era. Quis a sorte que, quando nos encontrávamos os três no passeio da gare por debaixo da marquise, um desconhecido acercou-se de nós e perguntou-me directamente se eu sabia onde era a rue de Lille. Sem uma hesitação e por mor dos meus dois companheiros, menti descaradamente dizendo com manifesta segurança ao desconhecido que seguisse à direita, cortasse à esquerda e estava na rue de Lille. Os meus companheiros estavam elogiados com o meu parisianismo e o francês lá foi informado por quem acabava de chegar a primeira vez na sua vida a Paris. Quando me lembro que a rue de Lille era aquela mesma onde o desconhecido me veio perguntar, tenho tantos remorsos como vontade de rir. Em seguida um moço veio saber se queríamos um táxi. Respond que sim. O moço, sem meu consentimento, levou consigo a minha gabardine que estava dobrada no meu braço. Os meus companheiros não perceberam o gesto. Ora eu é que não podia deixar de o perceber. Expliquei-lhes ainda a pensar no estranho caso e palavra de honra que apenas soube do que se tratava depois de o ter dito aos meus dois compatriotas: É costume de Paris, é uma garantia para os moços. Efectivamente chegava um táxi com o moço ao lado chauffeur e a minha gabardine de sinal.
Chegámos a Passy. No caminho ensinei ruas e edifícios um por um. Na pensão o meu quarto era uma insignificância esconsa de água-furtada e que não deixava mudar a cama de posição e fazia chorar os caixilhos das janelas e os ladrilhos do chão. Apesar disso, naquele mesmo quarto ficámos os três. Todos os dias eu ia mostrar mais coisas aos meus compatriotas. Eu conhecia efectivamente muito de Paris, por tanto o ter sonhado e lido, mas as admiráveis impressões que eu recebia das suas maravilhas tinham de ser à calada por mor dos meus dois companheiros. Fomos a Montmartre, a Montparnasse, aos boulevards, a todas as coisas mais evidentes e à noite vínhamos os três para o meu quarto em Passy. Até que os dois compatriotas começaram também a falar durante as refeições na pensão. Eles próprios não se esqueciam na conversa de que eram antigos ministros e actuais lentes da Universidade. Em poucos dias eu estava reduzido aos olhos de todos os comensais à expressão deplorável de não saber nada de político nem ter sequer frequentado como aluno a Universidade, quanto mais ser lente como eles! Depois do almoço saímos a pé e eu aproveitei a ocasião para lhes dizer umas coisas. Foram as seguintes:
- Vocês são meus compatriotas, são mais velhos do que eu, são antigos ministros do meu país, são actuais lentes da Universidade de Lisboa; além disso têm: um, uma carta de crédito de oitenta mil francos, outro, outra carta de crédito ilimitado, e eu tenho apenas três mil francos e depois de os gastar hei-de eu ganhar os que vierem depois. Mas não é isto que eu propriamente lhes queria dizer. O que que queria que vocês soubessem depois destes quinze dias em que estamos em Paris é que eu cheguei a esta cidade pela primeira vez na minha vida, sob a minha palavra de honra, no mesmo dia, à mesma hora, no mesmo instante do calendário que vocês os dois!...
E agora se vocês quiserem pensar alguma coisa acerca do que lhes acabo de dizer, pensem, porque eu também já pensei.
Paris, 13 de Fev. 1919
Almada Negreiros
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